segunda-feira, 15 de setembro de 2008

O Homo Plasticus

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por Christina Fontenelle em 28 de janeiro de 2006

Resumo: Viver no mundo moderno exige muito mais do que comida e trabalho.

© 2006 MidiaSemMascara.org

De tudo que se sabe até hoje sobre as divisões de classe que permearam a história da humanidade, em cada civilização, em cada cultura, muito me assusta o mais recente processo divisório que, já há alguns anos, venho observando e tentando verbalizar: o estético-tecnológico. Antes, porém de entrar no tema propriamente dito, é preciso esclarecer que, apesar de poder ser observado como fenômeno mundial, os limites desse primeiro ensaio sobre o tema se estabelecem dentro do universo das grandes cidades, principalmente as brasileiras – o que não impede alusões comparativas com outros universos.

Numa época em que tanto se fala em exclusão social e muitas bandeiras se levantam para diminuir a exclusão digital, não consigo entender a mudez em relação ao que há de mais óbvio, por ser visível: aquilo que resolvi chamar de exclusão estético-tecnológica. Ou seja, a incapacidade de pelo menos 80% da população brasileira de ter acesso ao que há de mais moderno e eficiente em termos de produtos, serviços e tecnologias responsáveis por maior longevidade, retardamento dos sintomas (internos e externos) da velhice, exames preventivos ou indicadores de doenças (graves ou não), manutenção de uma dieta saudável e até de embelezamento físico (portanto, promovedor de satisfação e de auto-estima – indispensáveis à vida longa e saudável, no mundo moderno).

Aos que julgam que algumas dessas coisas ainda estejam no mundo dos supérfluos dispensáveis, convido à reflexão e chamo a atenção para o fato de que, mais cedo do que possam imaginar, elas se tornarão o instrumento mais usado para discriminar e determinar castas, com alcance jamais imaginado, superando, à distância, tudo o que até hoje se conheça a respeito de divisores sociais instituídos, inclusive, por lei, em algumas épocas e lugares, como a escravidão ou a discriminação racial, religiosa e sexual.

A gravidade do fenômeno ultrapassa os limites da estética, uma vez que, em se tratando de vida humana, esteja se tornando cada vez mais determinante nas questões de vida ou morte - tanto do corpo como da saúde mental de seres humanos - e promovendo o surgimento de duas espécies bem distintas de indivíduos: os bem e os mal tratados. Estes dois tipos de pessoas estão ficando tão visível e agressivamente diferentes um do outro, que mais se aproximam da distinção entre duas espécies de seres humanos do que da simples diferenciação de aparência entre os mais e os menos abastados financeiramente.

Este processo já superou, e muito, aquilo que as religiões costumam chamar de "aparência" ou "beleza exterior", que, como apregoam – e com toda a razão - não deveria reger os julgamentos sobre as pessoas e seus verdadeiros valores. Isso faz parte da época em que o acesso a boas roupas, ao conforto e aos produtos de beleza não era determinante, na longevidade ou no já conhecido calvário daqueles que tentam melhorar ou manter o padrão de vida. Ou seja, numa época em que nada disso significava a diferença entre o direito de viver ou não – havia luz no fim do túnel.

Ora, não é novidade nenhuma que os mais ricos sempre tenham estabelecido padrões estéticos e de comportamento que se opusessem aos dos mais pobres. Se antigamente os pobres eram magros, porque tinham muito mais dificuldade para ter o que comer, para os mais ricos – e, portanto, para a ordem social dominante – o belo era ser gordo. Isso expressava, aos olhos da sociedade, o resultado dos efeitos do alimento que o dinheiro podia comprar. Hoje, por exemplo, acontece o oposto: quanto mais rica uma pessoa, mais chances terá de poder exibir um corpo esbelto, saudável e definido; já que os mais pobres não têm condições financeiras – e, portanto o direito, para nossa sociedade - de ingerir alimentos livres de gorduras TRANS, de agrotóxicos, de hormônios e de toda a espécie de ingredientes agressivos à saúde e altamente calóricos. Não é à toa que a saúde pública se vê às voltas com uma nova e crescente epidemia de "gordos mal nutridos".

A permissividade com esse tipo de "naturalidade" social chega a ser compreensível nas sociedades ocidentais que habitaram o planeta até meados dos anos 70. Mas, hoje em dia, com o progresso da ciência, dos meios de comunicação e da difusão do pensamento filosófico – ainda que pobre e limitado – trata-se de atitude criminosa, por cumplicidade ou por omissão, diante de um fato que salta aos olhos de qualquer um, com alcance e implicações bem mais graves do que outros que tanto causaram, e ainda causam, alardeado repúdio mundial, como a escravidão e o holocausto.

Não é exagero não. Viver no mundo moderno exige muito mais do que comida e trabalho. Ao contrário do que assistimos nos EUA, por exemplo, onde o progresso trouxe consigo a disseminação dos recursos médico-tecnológicos e estéticos por toda a sociedade, melhorando suas condições de vida e sua auto-estima, no Brasil isso não aconteceu. Apesar da excelência de nossa formação acadêmica e da qualidade de nossos profissionais, nesta área – fenômeno, aliás, mundialmente reconhecido – a população não foi agraciada com os benefícios que, teórica e logicamente, adviriam desse invejável desenvolvimento.

Ao invés disso, o abismo entre a aparência dos indivíduos que têm acesso aos recursos médicos e estéticos e aqueles que não têm está cada vez mais profundo. E isso nunca foi tão evidente, em grande parte, por causa da mídia – que não só veicula, mas cria e impõe padrões. Impor padrões ou incentivar a criação dos mesmos já é parte do trabalho irreversivelmente estabelecido nos meios de comunicação. Portanto, embora o assunto seja discutível, em termos de conteúdo, de ética e de limites, não será fato reversível. Entretanto, não lhes cabe a culpa de divulgar o que de fato já exista – coisa que, ainda muito menos, possa ser atribuída aos que porventura tenham recursos para usufruir.

Valorizar o ser, em detrimento do ter, vinculado ao caráter consumista da sociedade, vinha sendo um dos objetivos dos estudos da ética, dos princípios religiosos e da inteligência. Finalmente chegou-se ao ponto de mais valorizar o ser. Mas, não foi exatamente aquele tipo de "ser" – no sentido espiritual da palavra - que venceu a batalha. Houve uma espécie de simbiose entre o ter e o ser. Ter continua sendo fundamental, na medida em que determina a capacidade de acesso ao que há de mais desenvolvido na medicina, na estética e na nutrição. Ser esteticamente perfeito é o objetivo. Não basta mais ter, tem que ser. Dessa forma, o simples fato de ter – alvo da sociedade consumista – já não é mais suficiente para obter o certificado de sucesso. Venceu a plastificação do homem – considerando que um ser humano normal não consegue permanecer dentro dos padrões exigidos, por mais de 5 anos, na vida adulta, mesmo com o que de mais perfeito a genética possa lhe ter feito herdeiro.

O sofrimento imposto aos que não se enquadram, por herança genética ou por falta de recursos financeiros, ao padrão estabelecido e exibido, em regime de tortura diária, destrói e mata muito mais do que possam revelar estatísticas isoladas. Nesse exato momento, há milhões de homens e mulheres considerando-se incapazes de ser amados e outros milhões de pessoas condenadas à morte, por não poderem pagar por atendimento médico adequado – nem para a cura e muito menos ainda para a prevenção das mais variadas enfermidades.

No atual estágio de desenvolvimento tecnológico, não deveria mais haver gente faminta, desdentada, morrendo de doenças tratáveis e previníveis – gente mal tratada. Essa permissividade é mais criminosa do que a ignorância que permitiu a ocorrência de escravidões e holocaustos durante a marcha da evolução humana. É extermínio consentido de seres humanos considerados inferiores, para que sobrevenha um planeta de vitaminados, como se fosse um processo de seleção natural qualquer.

E as coisas estão de tal maneira que fica impossível não distinguir uma "espécie" de ser humano da outra. O que as roupas representavam até pouco tempo atrás, pela exibição de tecidos diferenciados e etiquetas famosas, hoje já não representam mais a diferença, devido ao acesso popular às imitações e mesmo ao barateamento das peças produzidas – por ordem da demanda e da própria questão de sobrevivência dos negócios.

Hoje, a diferença está na pele, no corpo bem torneado, na brancura e na perfeição dos dentes, na textura dos cabelos – tudo impossível de se tratar de herança genética, pelo menos, como já disse acima, por um período que dure mais que cinco anos da vida adulta de um ser humano normal. Botox, preenchimentos de rugas, eliminação de gorduras, alisamentos e tratamentos capilares, hormônios especiais, vitaminas, suplementos alimentares, lipoesculturas, plásticas corretivas, cremes e produtos de última geração estão promovendo o surgimento de uma nova espécie de gente – o homo plasticus.

Seria apenas motivo de inveja daqueles que não pudessem se parecer com a geração de plástico. Mas, o fenômeno do aparecimento desses seres vem acompanhado de outros dois: a ditadura da padronização – reflexo da universalização do pensamento "politicamente correto" – e a cultura da discriminação, que pune com isolamento e táticas de extermínio, aqueles que saem dos padrões físicos e ideológicos, não por questões genéticas e também não só pelas financeiras, mas sim pela forma de como as conquistas financeiras são usadas.

O homo plasticus é o produto final da sociedade socialista de consumo (por mais ambíguo que isso possa parecer), resultado de um projeto de alienação coletiva controlado, que conduz os habitantes do planeta ao "umbigocentrismo" coletivo, onde todos têm a ilusão de viver livres, satisfeitos e em sociedade, quando, na verdade não passam de meros robôs-agentes da utopia dos "Iluminados" – o que há de mais "super-mega-plus" na geração dos Big-Brothers.

Na realidade, tudo não passa de mera ditadura; planejada, implementada e conduzida por lunáticos que se julgam donos de arbítrio divino, para decidir o que seja melhor para todos os seres humanos, considerados, por eles, como gente desprovida de capacidade de escolhas corretas, mesmo que não convencionais, apesar das mesmas não interferirem no convívio social pacífico – a não ser para lembrar ao mundo de que cada homem é único, apesar de sociável, e de que as diferenças é que lhe dão esta noção de individualidade.

Os especialistas no assunto que atentem para o fenômeno, estudem e divulguem notícias pelos quatro cantos do planeta, antes que seja tarde.

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